No
livro de poemas "Retorno ao Ventre", Jr. Bellé conecta a história da
família ao movimento de resistência vivido pelos povos indígenas no Sul do país
Quando as lembranças de
Pedrolina deterioravam-se pelo Alzheimer, ela ligou para o sobrinho e escritor Jr. Bellé para contar uma história até então desconhecida. A família
deles, majoritariamente branca, estabelecida no sudoeste do Paraná, vinha de
raízes indígenas, possivelmente kaingang. É um relato parecido com a de
diversos brasileiros e atravessa a própria formação do país: vítima de um
bugreiro alemão, sua tataravó era uma criança indígena que nasceu, viveu e
morreu sem registros oficiais ou alguém para relembrar sua trajetória às
gerações seguintes.
Foi o autor que tomou para si esse
compromisso e preencheu as lacunas da memória com ficção em Retorno ao
ventre - Mỹnh fi nugror to vẽsikã kãtĩ, publicado pela editora Elefante. Na obra, tia Pedrolina
também aparece, mas, diferente da vida real, ela está no leito do hospital
quando compartilha as escassas lembranças sobre sua ancestral. A partir desse momento, os poemas começam a refletir sobre
as consequências do violento processo de ocupação de terras indígenas por
colonos brancos: a "marcha para o oeste". Um de seus episódios
inaugurais foi a primeira expedição militar da República em direção ao
"grande sertão", ou "vazio demográfico", como era chamado o
sudeste do Paraná. Contudo, o lugar era o lar e o território de inúmeros povos
originários.
o termo sertão é aqui
empregado
sempre
no sentido
de
vazio demográfico
por
vazio demográfico entenda-se apagamento
pois
é evidente que aquelas terras estavam cheias
de
pinheiro de macaco de tatu de xetá de unha-de-gato
de
taquara-mansa de fumeiro-brabo de ipê de kaiowá
de
gralha-azul de chuchu de xokleng de cipó de aracá
de
alecrim-do-mato de ariticum-preto de ingá de mỹnh
o
vazio estava especialmente cheio de mỹnh
estava
cheio de nós
(Retorno ao ventre, pg. 54)
Para construir esta poesia narrativa, Jr. Bellé recorreu a documentos históricos presentes nos arquivos de
espaços como o Museu dos Povos Indígenas do Rio de Janeiro e o Portal da
Legislação Histórica do Governo Federal. Parte
desta documentação está inserida no livro, como uma
composição artística de uma aldeia de casas subterrâneas, uma carta sobre a
primeira incursão militar ao sudoeste do Paraná redigida pelo capitão do
exército José Ozório e um registro de doação de
terras com a comprovação da presença dos povos originários no local.
Em meio a encontros e desencontros,
memórias e esquecimentos, a obra percorre o passado para explicar o presente.
Além de abordar as violências e resistências vividas pelas populações indígenas
um século atrás, o autor ainda comenta sobre os problemas atuais, como a
reivindicação do direito à demarcação de terras, ao passo que celebra
conquistas de lideranças como Sônia Guajajara, Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Iracema Gah Té (kujá kaingang que luta pela demarcação do Morro Santana, em Porto
Alegre, a quem o livro é dedicado), e muitas outras.
Bilíngue, o livro foi escrito em
português e traduzido ao kaingang pelo professor André Caetano, liderança da
T.I. de Serrinha, no Rio Grande do Sul, com revisão final do professor Lorecir
Koremág. Já a orelha é assinada por Eliane Potiguara, uma das mais importantes
poetas brasileiras e fundadora da Rede Grumin de Mulheres Indígenas, enquanto
as ilustrações são da artista e ativista Moara Tupinambá.
Vencedor do Prêmio Cidade de Belo
Horizonte na categoria Poesia, Retorno ao ventre reconstrói as lacunas da memória com a ficção e homenageia
os primeiros habitantes do país, que viviam aqui muito antes de ele ser
denominado “Brasil”. A obra também reivindica um novo olhar para o Sul, onde há
séculos a população indígena luta contra a invisibilização. Jr. Bellé explica: “falo sobre um local onde muitos já habitaram e
ainda habitam: kaingang, kaiowá, mbyá, xokleng, xetá... Os povos do Paraná têm
memória, e ela precisa ser preservada e exaltada”.
Ficha técnica
Título: Retorno ao ventre - Mỹnh fi
nugror to vẽsikã kãtĩ
Autor: Jr. Bellé
Editora: Elefante
ISBN:
9786560080423
Páginas: 168
Preço: R$ 60
Onde encontrar:
Editora Elefante
Sobre o autor: Doutorando em Estudos
Literários (UFPR), mestre em Estudos Culturais (USP) e especialista em
Jornalismo Literário (ABJL), Jr. Bellé é jornalista, pesquisador e programador
de literatura do Sesc Av. Paulista. Tem quatro livros publicados: “Trato de
Levante”, cuja obra foi adaptada para o cinema; “amorte chama semhora”; “Mesmo
se saber pra onde”, que recebeu o Prêmio Variações de Literatura e teve menção
honrosa no Prêmio Casa de Las Américas; e Retorno ao ventre, obra mais recente lançada pelo autor e publicada pela
editora Elefante, que venceu o Prêmio Cidade de Belo Horizonte na categoria
Poesia, em 2023. Filho de Dona Bete e seu Valcir, nasceu em Francisco
Beltrão, no sudoeste do Paraná, uma terra indígena ancestral.
Redes sociais:
Instagram: @jr.belle
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