"Morte e ficção do rei dom Sebastião": Livro investiga falsas notícias que influenciaram a memória coletiva em torno da morte do monarca
Em pesquisa inédita publicada pela Tinta-da-China Brasil, o historiador André Belo reconstrói os fatos que comprovam a morte do rei português e demonstra os usos políticos dos boatos enquanto criadores do mito sebastianista
“Sebastião, o rei de Portugal” (1565), Cristóvão de Morais; óleo sobre tela. Divulgação
Dom
Sebastião não vai voltar. O mito que acompanha os últimos quatro séculos da
história de Portugal é refutado em pesquisa minuciosa de André Belo,
apresentada no livro “Morte
e ficção do rei dom Sebastião”, lançamento de novembro da Tinta-da-China Brasil.
Tudo
começou em 1578, quando o jovem rei dom Sebastião partiu com cerca de 17 mil
homens para uma guerra em Alcácer Quibir, norte da África, e de lá não voltou.
O país não só foi derrotado na batalha, como passou a sofrer uma crise de
sucessão da Coroa. Nesse momento surgiram rumores de que dom Sebastião não
teria sido encontrado morto, e por isso poderia voltar. Nasceu, então o mito de
que o monarca retornaria, para a glória de seu país.
Se
até na Copa do Mundo de 2022, com a derrota de Portugal para Marrocos nas
quartas de final, esse acontecimento histórico voltou aos holofotes da
imprensa, é porque o sebastianismo é um dos principais temas do nacionalismo
português, que já inspirou poemas e textos de Fernando Pessoa e reverberou em
outros países lusófonos, por exemplo, em ideias messiânicas brasileiras.
Em
um ensaio que se deixa ler como história de detetive, André Belo vem ser o
estraga-prazeres para quem gosta de boatos, rumores e fake news. Seu estudo se
debruça sobre os fatos que comprovam a morte do rei, em 1578, e as cerimônias
fúnebres que se seguiram, numa autópsia desse importante acontecimento da
história portuguesa.
André Belo em lançamento de “Morte e Ficção do rei dom Sebastião”, editora Tinta-da-China Brasil. Crédito: Melissa Vieira/Divulgação
Mesmo
sem haver dúvidas sobre tais rituais de oficialização, o historiador reconhece
a força do mito e dos boatos e se lança em uma investigação que, além de
minuciosa, permite entender as entranhas da Europa de fins do século XVI. Belo
recupera documentos de diferentes arquivos de Portugal, Espanha, França e
Itália para reconstituir o mais célebre caso de impostura em torno do
sebastianismo: a alegação de um italiano da Calábria de que seria ele próprio o
rei. O falsário contou com apoio de partidários, inúmeras viagens e intensas
trocas de cartas e negociações entre Estados.
Como afirma o historiador francês Roger Chartier na orelha da edição brasileira de Morte e ficção do rei dom Sebastião, “ao desmontar com engenho as dissimulações e ingenuidades do impostor, os motivos de suas confissões ou obsessões, as convicções, mas também as hesitações de partidários do falso dom Sebastião, André Belo sublinha o papel decisivo das poderosas máquinas de convencimento na construção das identidades nacionais”.
Crise
na Coroa portuguesa
Como
indica o próprio título, o estudo de André Belo se divide em dois momentos
distintos. De início, o historiador busca recolher os detalhes sobre a morte e
o sepultamento de dom Sebastião.
Já
aqui se destaca seu interesse pela história da cultura e da comunicação, em que
a mecânica da circulação de notícias e os interesses associados a esse fluxo
são pontos de atenção do autor. No trecho dedicado à morte do rei, Belo
recupera aquilo que os contemporâneos sabiam e podiam saber a respeito da
batalha, atentando-se para o contexto político que facilitava a adesão aos
rumores.
Morto aos 24 anos, o rei não era casado e não deixou descendente, logo, seu falecimento resultou em uma crise de sucessão da Coroa portuguesa. Depois de o trono ter sido assumido pelo tio-avô, o cardeal dom Henrique, o familiar mais próximo na linha sucessória era o rei Filipe II da Espanha. Disso resultou a União Ibérica (1580-1640), durante a qual Portugal perdeu sua soberania para aquele país. O retorno mítico de dom Sebastião se reafirma diante da dificuldade em assimilar tal situação, com a esperança de que também o trono retorne para os próprios portugueses.
Fake
news
Até
hoje, renomados historiadores negam que o corpo de dom Sebastião tenha sido
encontrado e esteja sepultado em Lisboa, no Mosteiro dos Jerónimos. A própria
lápide do monarca gosta de sugerir a dúvida: em latim, o epitáfio começa
dizendo “Este túmulo encerra — se é verdadeira a fama — Sebastião”.
Mas
não há fundamento para isso, diz André Belo. Os relatos da contenda, escritos
por diferentes testemunhas oculares, dão conta de um reconhecimento formal do
corpo morto do rei pelos fidalgos portugueses cativos, oficializado por um
juiz, também ele português. E estão documentadas as transferências dos restos
mortais realizadas até seu destino — em 1582, conta o autor, uma peregrinação
atravessou o sul do reino por terra, até chegar a Lisboa, com a clara intenção
de exibir o caixão e assim desmentir rumores.
Num
paralelo com os tempos atuais, poderíamos perguntar se o boato do retorno de
dom Sebastião é uma espécie de fake
news . Belo tem cautela ao usar a expressão, mas admite uma
relação: “É uma situação que mostra como operam os rumores e as falsas
notícias. Aliás, eles estão presentes em toda a história da humanidade. São tão
antigos quanto a transmissão de informação”.
No título de seu livro, a palavra usada para sintetizar todo o restante da obra, dedicado à mais célebre impostura em torno de dom Sebastião, é “ficção”. Mas ele avisa: “A palavra é para ser entendida no seu sentido antigo de fingimento, de dissimulação (do latim fictio). A ficção sobre a qual vais ler não é, pois, de literatura, mas de impostura”.
“O
calabrês”
Durou
cinco anos e teve uma repercussão internacional significativa o mais longo e
importante dos episódios de impostura política do rei dom Sebastião. Ela girou
em torno de Marco Tullio Catizone, conhecido como “o calabrês” por ser oriundo
de uma aldeia da Calábria, no sudoeste da Itália. O homem teria sido
interrogado 27 vezes, passou mais de dois anos numa prisão em Veneza e por fim
foi executado, em 23 de setembro de 1603 — antes da forca e do esquartejamento,
teve cortada sua mão direita, com que assinou em nome de dom Sebastião. A
cabeça e a mão foram expostas em locais públicos.
Catizone
não falava português, não se parecia fisicamente com o rei e não tinha
lembranças de sua suposta vida anterior em Portugal. Ainda assim, escreve Belo,
“várias razões, articuladas entre si, podem explicar a duração e o impacto de
um episódio que, visto do presente, parece ter tão pouco fundamento”.
O historiador enumera alguns desses motivos, como a persistência de um forte sentimento político comunitário português, com uma marcada expressão anticastelhana. Também houve utilização política da impostura, aspecto no qual Belo se debruça, narrando a história de um grupo de portugueses exilados e de rivais do rei da Espanha, que buscavam enfraquecê-lo.
Novo
brasão
O
autor também chama atenção para uma necessidade constante de se refazer o fio
da história, buscando novos testemunhos de confirmação ou negação da identidade
do suposto rei. E o próprio Catizone atuava para imprimir cada vez mais
consistência à sua impostura. Belo recuperou documentos tais como uma elegia
contra a injustiça da prisão, escrita pelo falsário em um italiano literário.
Há também uma carta ao papa, que nunca foi entregue, e até mesmo um novo brasão
da Coroa portuguesa foi criado, com elementos que permitem traçar um paralelo
entre o sofrimento do cativo e a Paixão de Cristo.
Catizone
teve um papel ativo ao se fantasiar de rei. “Antes e depois da detenção, ele
procurou adequar a sua imagem física àquilo que se dizia sobre a aparência de
dom Sebastião”, escreve Belo, “e também adquirir informação (aprendizagem da
língua portuguesa e de acontecimentos históricos) que lhe permitisse ser
credível no ponto delicado da memória. Desde o início, o impostor, sozinho ou
acompanhado, tomou iniciativas, criou uma versão do seu passado, tentou
convencer por meio de uma certa cultura literária, contrafez a assinatura do
rei, forjou textos e imagens”.
O calabrês, como já se disse, não atuava sozinho. Teve um papel fundamental o frade João de Castro, que ficou conhecido como o “São Paulo da religião sebastianista”. Considerado “pai fundador” do sebastianismo, ele integrava um grupo de seguidores de dom António; trata-se de um príncipe português que se autoproclamou rei em 1580, durante a crise de sucessão portuguesa, e liderou a resistência militar contra a candidatura do espanhol Filipe II ao trono. Derrotado militarmente pelos castelhanos, dom António teve de fugir do reino, acompanhado pelos seus mais próximos seguidores. No exílio, participou sem sucesso de iniciativas apoiadas por franceses e ingleses para atacar Portugal.
Novo escudo da Coroa portuguesa, talvez desenhado pelo próprio impostor Marco Tullio Catizone, utilizado em cartas por seu apoiador, frei Estêvão. O desenho das novas armas traz elementos como pregos e chicote, que remetem à Paixão de Cristo e estabelecem um paralelo com o suplício do falsário. Archivo General de Simancas. Cota AGS, MPD, 68, 044. Divulgação
Autor
do livro Discurso da vida do
sempre bem vindo, et apparecido rey dom Sebastiam nosso senhor,
João de Castro foi um dos grandes incentivadores e condutores do episódio
messiânico em torno de Catizone, como uma última expressão desse grupo de
exilados, os antonianos. Também é nesse contexto, explica Belo, que tem início
a refutação da versão oficial sobre a morte do rei, um trabalho feito
essencialmente por João de Castro e pelo padre dominicano José Teixeira.
Messianismo
O
sebastianismo foi reapropriado por interesses políticos e sociais diversos em
diferentes épocas históricas, explica Belo. Nascido ainda no século XVI, esse
misto de rumor, lenda e memória identitária se renovou, segundo moldes
nacionalistas modernos, entre o final do século XIX e a primeira metade do XX.
“Louco, sim, louco porque quis grandeza”,
começa Fernando Pessoa no conhecido poema de Mensagem que louva a memória
mítica do monarca. Trata-se de apenas um exemplo da presença desse mito no
imaginário português.
“Estamos
perante uma memória não cumulativa, que exigiu a cada geração que se
confrontasse com a demonstração de uma morte — ou que não se confrontasse com
ela, permitindo a erupção regular de ‘lapsos’ sebastianistas”, escreve Belo.
O
messianismo que reveste a história de dom Sebastião se espraiou para o Brasil e
inspirou a cultura brasileira, em acontecimentos históricos, na cultura e na
arte. Em Pernambuco se tem notícias de duas irrupções sebastianistas no período
da Regência, em Bonito, em 1819, e depois em 1838, em Pedra Bonita (hoje Pedra
do Reino). Esse último caso se tornou famoso e inspirou duas obras literárias: Pedra Bonita (1938), de José
Lins do Rego, e Romance d'A
Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta (1971), de
Ariano Suassuna. O mesmo mito inspirou, no final do século XIX, Antônio
Conselheiro a ser o líder popular da Guerra de Canudos, na Bahia.
Na
cultura, o filósofo português Agostinho da Silva (1904-94), exilado no Brasil
durante a ditadura de Salazar, formulou na década de 1950 um neossebastianismo
que colocava o Brasil, com sua diversidade étnica e o seu tamanho continental,
como o país que lideraria os povos lusófonos. Suas ideias influenciaram nomes
como o cineasta Glauber Rocha e tropicalistas como Caetano Veloso e Jorge
Mautner, como propõe Claudio Leal na revista
Quatro Cinco Um.
Morte
e ficção do rei dom Sebastião
Editora:
Tinta-da-China Brasil
Autor: André Belo
Apoio:
DGLab
288
páginas | 16 x 23 cm | R$ 90 | Lançamento: novembro 2023
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