Chega ao Brasil a premiada graphic novel que
narra a educação sentimental e a transição de gênero de Maia Kobabe
Com
seu despretensioso livro de estreia, que começou a ser feito numa aula de
faculdade para explicar sua identidade de gênero e sua sexualidade para os
amigos, Maia Kobabe desencadeou um debate que incendiou os Estados Unidos. Gênero queer chega ao Brasil
no Mês da Visibilidade LGBTQIA+ para qualificar o debate em torno da teoria de
gênero e estimular o acesso de jovens brasileiros a narrativas escritas por
pessoas LGBTQIA+.
Gênero
Queer — Memórias
Maia
Kobabe
Cores:
Phoebe Kobabe
Tradução:
Clara Rellstab
Revisão
técnica em linguagem não binária: be rgb
Editora
Tinta-da-China Brasil
240
páginas | 14 x 21 | R$ 99,00 | Lançamento: 1º de junho de 2023
*
“Não
quero ser menina. Também não quero ser menino. Tudo o que eu quero é ser eu.”
*
Quando
Maia Kobabe nasceu, no fim dos anos 1980, nas imediações de San Francisco, foi
identificade como menina. Desencanada e hippie, sua família não parecia se
preocupar muito com os códigos de gênero na educação dos filhos. Assim que
passou a conviver com outras crianças, Maia notou que nada daquilo que teimava
em encaixar seu corpo e personalidade no gênero feminino — roupas, brinquedos,
gestos, pronomes — correspondia à sua autoimagem. Por que uma menina não pode
nadar sem camiseta?
Na
adolescência, Maia percebeu que o seu desejo também não seguia o roteiro-padrão
das descobertas sexuais: sentia uma inexplicável atração por colegas andrógines
e não conseguia ficar com ninguém. Esse e outros dilemas da adolescência — Maia
não sabia por que “precisava” raspar os cabelinhos da perna ou usar maiô,
sentia pânico diante da menstruação e das primeiras consultas no ginecologista,
descobriu tardiamente seu gosto pela leitura (e logo depois se apaixonou pela
literatura queer)
— são narrados no livro em tom afetivo e sincero, que nos transporta para perto
de Maia.
Maia
saiu do armário duas vezes: primeiro, como bissexual, durante o ensino médio.
Mais tarde, na faculdade, como assexual (alguém que não sente ou sente pouca
atração sexual por outra pessoa, independentemente de gênero), queer e não binárie (que não
se identifica com o gênero masculino nem com o feminino). Nesta HQ
autobiográfica, Maia narra esse processo de questionamento dos padrões de
gênero, transição e afirmação, até adotar o gênero queer — palavra que perdeu seu primeiro
sentido, de “não convencional, excêntrico”, para abarcar inúmeras
possibilidades.
Gênero
queer percorre cada
etapa dessa jornada ao som de David Bowie e One Direction, com muito Tolkien,
Harry Potter e fanfics. Em meio a uma profusão de saborosas referências pop e
nerds, acompanhamos a educação sentimental de ume jovem na Califórnia da virada
do século, em um ambiente de liberdade nos costumes, efervescência cultural,
curiosidade intelectual e profundas dúvidas sobre gênero e sexualidade — muitas
delas, exatamente as mesmas que todes temos na adolescência.
Gênero
queer se filia à
linhagem das grandes graphic
novels de não ficção de nossa época, como Maus, de Art Spiegelman, Persépolis, de Marjane
Satrapi, e Fun Home,
de Alison Bechdel — notáveis por sua capacidade de levar o leitor a uma jornada
de conhecimento de um novo universo cultural por meio de uma narrativa
magnética e vibrante.
Prêmios
e boicotes
Desde
sua publicação original, em 2020, o gibi de Maia Kobabe abriu cabeças, se
tornou best-seller — as diferentes edições já lançadas superam os 100 mil
exemplares vendidos — e recebeu prêmios: ganhou o Alex Award, concedido pela
ALA, a Associação Norte-Americana de Bibliotecas, e foi finalista do Stonewall
Book Award, que premia narrativas LGBTQIA+. Mas Gênero qeer também despertou a ira dos
moralistas: em 2021 e 2022, foi o título mais ameaçado por movimentos de
banimento de livros em bibliotecas nos Estados Unidos, segundo levantamento da
ALA. O ano passado também registrou um aumento de 40% nos títulos sob ataque —
2.571 livros foram ameaçados, dos quais 40% tinham protagonistas negros e 20%
debatiam questões raciais, segundo dados do PEN America, instituto que monitora
ameaças à liberdade de expressão. O debate sobre gênero também está no foco dos
movimentos de censura, e Gênero
queer foi um dos alvos.
Em
um artigo sobre seu livro, Maia conta que estava em casa em 23 de setembro de
2021 quando começou a receber notificações no celular. Havia sido marcade num
vídeo do Instagram. “Parecia ser uma filmagem de uma reunião do conselho
municipal, e uma mulher discursava com raiva diante de um suporte para ler
livros. Não liguei o som. ‘Esses são os doentes que escrevem esses livros
horrorosos’, alguém comentou ao marcar o meu perfil.” Um protesto de pais
exigia o banimento de livros da biblioteca escolar local.
“Na
manhã seguinte, acordei e vi vários e-mails de jornalistas da Associated Press
e de agências de notícias de Washington.” O movimento de perseguição a seu
livro — que havia sido lançado com tiragem modesta e sem alarde no ano anterior
— tinha se alastrado pelo país e ainda não dá sinais de recuar.
Ex-bibliotecárie
e professorie de quadrinhos para adolescentes, Maia se preocupa com a restrição
de acesso de jovens como elu a livros fundamentais para compreenderem a si
mesmes. “Não raro”, escreve Maia, “os jovens queer
não têm opção senão procurar fora de casa e do sistema educacional as
informações sobre quem são. Banir ou restringir livros queer em bibliotecas e
escolas é como privar jovens queer
de coletes salva-vidas, jovens que talvez ainda nem saibam quais palavras devem
digitar no Google para descobrir mais sobre o seu próprio corpo, sua identidade
e sua saúde.”
Símbolo
de resistência
Num
movimento de reação a essa onda de censura, Gênero
queer acabou se tornando um símbolo da resistência de
bibliotecáries e ativistas pela liberdade de expressão, que vêm adotando
estratégias de guerrilha para garantir a jovens do interior dos Estados Unidos
o acesso a narrativas LGBTQIA+. Bibliotecas improvisadas e clubes de leitura
relâmpago surgem de um dia para o outro para furar a censura em pequenas
localidades que tiveram suas bibliotecas escolares esvaziadas. Nesses espaços
de leitura subversivos, Gênero
queer faz parte do kit de sobrevivência.
O
governador da Carolina do Sul, o republicano Henry McMaster, chegou a tachar o
livro de “obsceno e pornográfico” e “provavelmente ilegal” — embora as poucas
cenas de sexo do livro sejam retratadas sempre em chave afetiva e não tenham
nenhum tipo de violência. O presidente Joe Biden chamou os movimentos
pró-banimento de livros de “extremistas do Make America Great Again”. A ALA
indica o livro para pessoas a partir dos 12 anos.
Sobre
os banimentos, Maia afirmou, em ensaio publicado no site da NPR, a National
Public Radio, que procura “encarar tudo isso, se não como um elogio, ao menos
como uma espécie de confirmação da potência de minha obra”. Elu só reforçou seu
compromisso de continuar escrevendo histórias centradas em personagens trans, queer e não binárias. “Tudo
bem se alguns locais do país estão obcecados por censurar meu trabalho, mas me
recuso a fazer o mesmo.”
Linguagem
não binária
A
pedido de Maia Kobabe, a tradução brasileira, de Clara Rellstab, dedicou um
cuidado especial ao uso da linguagem não binária, isto é, sem o uso automático
da flexão masculina — como na palavra “todes”, por exemplo.
A
linguagem, afinal, é um dos temas principais do livro. Da insatisfação com o
tratamento sistemático no feminino, ainda em sua infância, à descoberta do sistema
anglófono de pronomes Spivak, que acabou adotando, Maia explica por que
palavras erradas ou descuidadas podem ofender. Ao mesmo tempo, elu reconhece
como é difícil mudar, na família, entre amigos e na sociedade, práticas tão
enraizadas. A solução que encontra dá o tom geral de Gênero queer: corrigir e
explicar, com paciência e generosidade, cada escorregão pronominal, para que a
linguagem não binária seja de fato compreendida e utilizada no cotidiano por
nós todes.
Mas
como isso se aplica na tradução de uma história em quadrinhos? Se no inglês o
sexismo se manifesta basicamente nos pronomes, nas línguas neolatinas a flexão
de gênero recai também sobre artigos, adjetivos e substantivos, o que
acrescenta algumas camadas de complexidade. Na falta de um sistema equivalente
ao escolhido por Maia, o Spivak (no qual os pronomes he, she, his, him e her são substituídos por e, eim, eir), a revisão técnica da
tradução, assinada por be rgb, tradutorie e editorie de livros, adotou em Gênero queer o sistema
brasileiro elu/delu, o mais corrente na atualidade.
Nesse
sistema, palavras que ganhariam a flexão “natural” no masculino recebem uma
terminação neutra: “escritor” ou “escritora” viram “escritorie” (plural
“escritories”), por exemplo, e os artigos “a” e “o”, que geralmente marcam o
gênero, são substituídos por “u” e “e”, dependendo da palavra; por exemplo, no
plural “os vizinhos” se tornam “us vizinhes”. A revisão também buscou evitar
palavras masculinizantes, como “pais” para traduzir parents (ficou “minha família”).
O uso da flexão de gênero não binária na tradução acompanha o processo de descoberta de Maia, que é tratade como menina até o momento em que, já adulte, ume artiste queer abre seus olhos para um novo universo, simbolizado por seus novos pronomes. Ou seja, ninguém nasce sabendo linguagem não binária, nem mesmo Maia, mas podemos aprender. E, de certa forma, acabamos evoluindo nesse aprendizado junto com elu, ao longo da leitura.
A
HQ foi parcialmente financiada pelo programa de patronos da Tinta-da-China
Brasil.
Gênero
Queer n’A
Feira do Livro 2023
Inspirado
num trecho do HQ de Maia, a editora Tinta-da-China
Brasil preparou uma ação em sua tenda durante A Feira do Livro 2023,
que acontece na Praça Charles Miller, em São Paulo, entre os dias 7 e 11 de junho. No
estande, adesivos com os pronomes Spivak serão distribuídos
gratuitamente.
Maia
Kobabe na POC CON
Maia Kobabe está entre us convidades da POC CON – Feira LGBTQ+ de Quadrinhos e Artes Gráficas, que acontecerá nos dias 9 e 10 de junho no Centro Cultural São Paulo. A participação de Maia será virtual, em uma conversa gravada previamente com Lino Arruda, autor transmasculino premiado no Prêmio Mix Literário, que vai lançar a HQ Cisforia no evento. A conversa, com legenda em português, será transmitida no canal do YouTube da POC CON (youtube.com/c/PocCon) em data a ser confirmada.
Tinta-da-China
Brasil | Associação Quatro Cinco Um
Largo
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