Sim Sim Sim, álbum de estreia do Bala Desejo, grupo
formado pelos músicos cariocas Dora Morelenbaum, Julia Mestre, Lucas Nunes e Zé
Ibarra, foi pensado em duas partes que se complementam. Após disponibilizar o
lado A do trabalho (leia
aqui e ouça aqui), o
quarteto libera, no dia 16 de fevereiro, a sua segunda metade, o seu lado B (ouça aqui). O álbum chega aos
aplicativos de streaming
pelo selo Coala Records. "A gente quis retomar um pouco a coisa toda do
vinil, do produto que se consome inteiro, tem toda uma aura setentista que nos
agrada; tentamos perfumar tudo com ela", afirma Zé Ibarra. "Tem uma
coisa de o lado A ser mais pra fora, enquanto o lado B é mais pra dentro, o que
faz do disco inteiro um corpo só, que se completa na sua totalidade, não é uma,
nem duas músicas que contam a história, é o disco todo", ele define.
A seguir, confira o faixa a faixa comentado de Sim Sim Sim:
"EMBALA PRA VIAGEM"
Sim Sim Sim é um
disco feito por cariocas. É um disco que dialoga com a música brasileira como
um todo, mas filtrado por uma subjetividade carioca. Quando a ideia da Kombi
itinerante do Bala surgiu, muito inspirada no astral e na energia do
documentário "A Farra do Circo" (2013), que conta a história da
criação do Circo Voador, talvez a casa de resistência cultural mais importante
do Rio, começou a brotar em nós a necessidade de uma camada a mais de
significado para o disco. As ideias do "Sim" como força motriz
perante a vida, do tesão, da euforia e da catarse coletiva foram se misturando
com a aura do carnaval, do calor e do suor do Rio de Janeiro. Então, nada
melhor do que começar o disco fora do disco, na rua, ou melhor, num boteco,
onde o Bala Desejo despontaria com seu Recarnaval em uma esquina e dali
seguiriam viagem. Poderíamos nós mesmos termos atuado nesse diálogo inicial do
disco, mas achamos mais interessante chamar duas das figuras que encarnam muito
naturalmente o que é esse cenário carioca: Teresa Cristina e Mosquito. E não
para falar sobre a metafísica das coisas, mas sim do corriqueiro. O disco
começa no meio de um diálogo avulso numa manhã de carnaval. A gente sempre quis
dar esse tom mundano para o disco, essa coisa de rua, de asfalto, de bagaceira,
do corpo. Embala pra viagem é o início da trajetória da Kombi do Bala, ela que
vem para nos levar disco afora fazendo o Recarnaval por onde passa.
"BAILE DE MÁSCARAS
(RECARNAVAL)"
Quando começamos a conceber esse disco, no meio da pandemia, pensamos muito
em criar músicas que existissem no lugar "sublime", em algo que fosse
belo, algo que arrebatasse pela pura beleza e através dela existisse no mundo.
O belo que curaria, o belo que emocionaria, mas naquele momento ainda estávamos
só nas confabulações conceituais do disco. Quando sentamos para compor de fato,
vimos que a tônica, que a urgência do momento na verdade não necessariamente
era o sublime ou o etéreo, mas sim o corpo. A dimensão do corpo estava tão
comprometida pela pandemia que ficou muito claro que tinha de ser esse o fio
condutor do disco, o que iríamos de fato ter como norte para nos guiar nesse
desafio de compor um disco em 6 meses.
A
vontade de fazer música para se dançar já era algo que existia dentro de nós,
então quando entendemos que a gente queria era fazer um álbum para o corpo,
tudo começou a andar. “Recarnaval” foi o maior desafio em termos de arranjo do
disco, porque desde o primeiro momento, desde a primeira linha melódica já dava
pra sentir que ali tinha algo que incorporava toda a sensação que queríamos
transmitir com ele, mas como colocar isso da melhor maneira possível? Tal qual
uma cápsula super densa de informação translúcida, a dança entre a melodia e a
harmonia de “Recarnaval” tentava nos dizer para onde devíamos caminhar, mas
demoramos muito para entender para onde ela queria ir. Tem músicas que nos
obrigam a desbravar territórios novos, gêneros novos, hibridismos musicais, e
“Recarnaval” nos obrigou. Foi uma luta nesses meses, tentando achar a perfeita
tradução para ela. Alguns dizem que é um frevo, outros dizem que parece disco music, o fato é que
pensamos em Caetano, Abba, Moraes e Tom Jobim, no que deu não cabe a nós
classificar, mas de certa forma achamos que ela conseguiu incorporar definitivamente
o espírito recarnavalizante do álbum. “Recarnaval” é, como muitas músicas são
em um disco, a flecha conceitual, que concatena dentro dela as ambições tanto
musicais quanto subjetivas do Bala Desejo no disco Sim Sim Sim.
"LUA COMANCHE"
Muitas músicas surgem com uma letra provisória antes da oficial, palavras
que encaixam bem com o som das melodias, que vão servindo de guia para a letra
final quando ela enfim vier. “Lua Comanche” foi uma delas. A palavra “comanche”
veio junto com a primeira ideia melódica e parecia ser a perfeita adequação
para o som. Tentamos achar outra palavra que encaixasse tão bem mas nada cabia,
até o momento em que decidimos que seria "comanche" mesmo, que talvez
tivesse que ser, mesmo sem um motivo aparente por trás. Lembramos que o Jorge
Ben cita em várias músicas dele essa palavra e provavelmente tinha sido daí que
tínhamos tirado ela, mas como várias coisas nesse disco, muitos porquês se
revelaram após os fatos. Desde as primeiras viagens à Barbacena (Minas Gerais)
para compor, percebemos que por acaso, toda vez que nos reuníamos era em
período de lua cheia. Achamos interessante e entramos numa de que seria legal
se nós sincronizássemos os acontecimentos importantes do disco com a lua cheia
e aí que vem a parte mais interessante: quando fomos a fundo, descobrimos que
os Comanches foram um povo indígena famoso por suas expedições em lua cheia,
que iluminava os caminhos por onde eles passavam. Com essa descoberta tudo
ganhou uma mística mais forte ainda para que a música existisse e para que
então fizéssemos a letra final, agora sem fugir de “comanche”. A gente brinca
que o Bala é meio profético, porque várias das coisas que colocamos nas letras
começaram a de fato acontecer dentro e fora de nós, e “Lua Comanche” é talvez a
mais profética de todas, desde o começo, um mistério atrás do outro e uma
surpresa infinita.
"CLAMA FLORESTA"
“Clama Floresta” é nosso grito de socorro à Mãe Natureza. Julia resgatou um
refrão antigo que tinha composto com Zé em 2013, e desenvolveu esse refrão em
versos que clamam pelas águas, pelo "azul, verde e marrom" da
floresta. É uma ode à natureza e uma crítica ao poder aniquilador do humano e
sua fome maior que a boca. O texto no final é uma poesia feita pela Maria Gadú
e pela Maria Santos. Queríamos uma fala no fim dessa música, uma fala que
servisse quase como um chamado, uma proclamação e achamos muito sensível o que
saiu no final: uma poesia sobre a mata, sobre a mãe, sobre a terra e sobre o
Brasil. "Não deixar em vão o choro das Ibirapitangas".
"DOURADO
DOURADO"
A gente se leva muito a sério, ainda bem que existe o Bala Desejo.
"Lembro bem quando fui encontrar a Dora numa noite em que nenhum de nós
estávamos muito bem. Sentamos no sofá e ficamos muito tempo em silêncio,
deixando aquela melancolia existir até o momento em que resolvemos tomar uma
atitude perante aquela tristeza, e brincar de fazer uma música ‘pra cima’. Em
questão de minutos uma melodia antiga, considerada ‘bobinha’ por nós, ganhou
uma letra também ‘bobinha’, mas que bastou para nos fazer alegres naquela noite
triste. O nome veio na hora mesmo, pensamos na sensação do sol na pele, e logo
dourado surgiu na cabeça, pronto, assim ficou: ‘Dourado Dourado’", conta
Zé. É engraçado porque nunca pensaríamos em colocar uma música que considerávamos
‘bobinha’ num álbum sério, mas o Sim
Sim Sim não é um álbum sério, é uma grande brincadeira, uma grande
risada. Só depois de um tempo conseguimos ver que naquela aparente bobeira há
muita coisa bonita também e que faz muito mais sentido do que muita música que
se pretende a ser séria. Nos serviu de lição.
"NESSE SOFÁ"
“Nesse Sofá”, assim como “Baile de Máscaras (Recarnaval)”, poderia ser
chamada de uma música pandêmica. É uma crônica de alguém que se encontra
naquele estado de letargia, de ansiedade e imobilidade causado pelo
confinamento e tem saudade da vida como ela era, dos pequenos prazeres, de
madrugar e amanhecer junto de um amigo num sofá. É uma música que, entre nós,
chamamos de "música de sargeta", quando a cabeça já não dá mais conta
da realidade e o que resta é se largar em um canto qualquer e esperar por algum
lapso de luz para que algo mude. Tudo é dito num tom muito direto, muito
próximo da linguagem corriqueira do dia a dia e o arranjo não poderia ser
diferente: um blues
cru, com pouca instrumentação à la Gilberto Gil no início de sua carreira.
Obviamente, para fechar ainda mais o conceito visceral da faixa, todos os
instrumentos dela foram gravados ao vivo, menos a guitarra nervosa de Tim
Bernardes que entrou dando o toque final na canção.
"NANA DEL CABALLO
GRANDE"
Essa é a única música do disco que não foi composta por nós. Quando nos
juntamos no começo da quarentena, a gente gostava de cantar ela juntos no
corredor da escada [do prédio], com aquele reverb
gostoso. Com o tempo ela foi virando parte do nosso repertório
coletivo e sempre imaginamos ela dentro do disco. Queríamos uma música para
fazer a transição entre o Lado A e o Lado B, e imaginamos que o Lado A podia
terminar colocando todo mundo para dormir. Dora já tinha uma ligação especial
com o universo das canções de ninar. Além disso, tanto Zé como Julia têm
família de origem espanhola e cresceram ouvindo as Nanas cantadas pelas nossas
avós, então nada mais natural do que colocar "Nana del Caballo
Grande" nesse lugar. Além de tudo isso, essa música, assim como
“Passarinha” e “Dourado Dourado”, abarcam a nossa vontade de dialogar não só
com o Brasil mas com a América Latina como um todo.
"CHUPETA"
Dando continuidade à narrativa em segunda camada do disco, "Chupeta''
veio para abrir o Lado B. A Kombi do Bala parou pra descansar e enguiçou, e só
com muita gente empurrando ela pode seguir viagem. Essa foi uma imagem
metafórica que achamos para servir de introdução à próxima música, “Lambe
Lambe”, que tem como temática a união de potências, a necessidade do nosso
entendimento do contexto atual da música brasileira como cena, e os frutos que
podemos tirar disso uma vez alcançada essa sensação coletiva.
"LAMBE LAMBE"
"Quem sabe essa transa que tá no ar diz logo seu nome, se deixa queimar,
porque uma coisa tão certa não pode esperar". Tá tudo aí, “Lambe Lambe” é
a música metalinguística do disco, é a sopa do Bala, é a nossa cena musical
atual, é a vontade do desbunde. Uma tentativa de lamber a todos nós, nós de
agora e nós que já fomos. É uma música de referências, como uma sopa, a qual é
composta por mil ingredientes. Falamos de Gil, de Caetano, da Tropicália como
fontes de inspiração mas também e principalmente convocamos nossa galera
"Tim, Tom, Beat, Brack, Ana, Rubel, Chablaubla!" para essa festa, que
deve ser a existência compartilhada em um momento histórico. “Lambe Lambe” é
mistura, a abertura para o multi. Pro arranjo pensamos em Rita Lee, que traz
com ela desde sempre e para sempre a força vital da juventude. É uma música para
sorrir e dançar, e se tudo der certo, dar umas lambidas em quem se ama.
"PASSARINHA"
Não se pode cortar as asas de nenhuma passarinha. Deixe-a livre pra voar!
Uma mistura nossa de espanhol com português. Uma licença para a criação de
neologismos: nossa “Passarinha” está fora dos dicionários, ganha sua forma em
vôo livre. O canto feminino do disco. Um dueto de Dora Morelenbaum e Julia
Mestre. A composição começou sendo uma parceria das duas, mas que na primeira
imersão do grupo em Copacabana contou com a entrada de Lucas Nunes e Zé Ibarra
na continuação da letra e da música. Ela foi ganhando forma e arranjo dentro do
sentimento que começou na mistura de línguas para a mistura de ritmos da
américa latina. É cumbia com berimbau, flauta com vassourinhas, violões que
dançam e um baixo que abraça o suingue do Buena Vista Social Club. É nesse
caldo latino que bebe nossa “Passarinha”.
"SIM
SIM SIM"
Na introdução de “Clama
Floresta” tem um verso que diz: "Tomara que caia chuva, caia que caia que
caia". Em dado momento, quando procurávamos mais alguma faixa para
costurar a narrativa do disco como um todo, lembramos dessa introdução e surgiu
a ideia: por que essa chuva não cai, enfim, em algum lugar mais pra frente do
disco? E se ao invés de água caísse ‘sim’ do céu? Pronto, tava feito. Lembramos
de Arrigo, das experimentações da vanguarda paulista e achamos que tinha tudo a
ver. É a faixa mais curta e mais poeticamente livre do disco, mas que,
metaforicamente, fala sobre a força do sim, da atitude do sim, da afirmação do
sim como motor político. O sim do corpo, o sim da vontade e do tesão como ponto
de partida para qualquer manifestação no mundo.
"MUITO
SÓ"
“Muito Só” é a música
mais antiga do disco. A melodia e a harmonia vieram lá em 2016, numa viagem de
fim de ano da nossa galera ao sul da Bahia. Todos gostávamos muito mas nunca
tínhamos emplacado uma letra que fizesse jus à parte musical dela. Só existia
uma frase, desde o início: "me sinto muito, muito só". Ela foi caindo
no esquecimento, discos foram sendo feitos e a música não entrou em nenhum
deles, até que no desespero do prazo que tínhamos e era bem curto, resgatamos
ela do baú. Tom Jobim dizia que não há maior inspiração do que um prazo e um
cheque. Tínhamos o prazo e já estava de bom tamanho. A letra saiu, seguindo a
atmosfera do fragmento "me sinto muito só" e tudo veio de repente.
Até o ritmo dela, que vinha sendo tocado há 6 anos da mesma forma, um ijexá,
mudou dias antes da gravação. Entendemos que tinha que ser algo mais lânguido,
mais mole, sensual, algo que lembrasse Jorge Ben, e assim ficou. O diálogo em
espanhol no final é uma pequena história de um casal em tempos difíceis e
também conversa com Barry White e Serge Gainsbourg, brincando com a ideia
das falas em música. Além do arranjo de sopros excepcional escrito por Diogo
Gomes, na onda do Gal Canta
Caymmi, passando por Gershwin, as cordas no final – arranjadas por
Jaques Morelenbaum – vieram de outro lugar, inspirados no fonograma "20
anos blue", gravado por Elis, em que surge uma orquestra dando todo um tom
dramático para a canção, muito “só” pedia uma cereja do bolo. A trajetória
dessa música talvez seja a mais tortuosa do disco, mas com certeza é uma das
músicas mais sensíveis e lindas do Sim
Sim Sim.
"CRONOFAGIA (O
PEIXE)"
A influência dos mineiros sempre foi muito importante para nós, e não tinha
como num álbum que se propõe a tantas misturas, tantas experimentações
híbridas, eles não constarem. O peixe foi uma tentativa de simbolizar o fluxo
cultural entre o interior e o litoral do Brasil. Também pensamos em Caymmi
enquanto fazíamos ela pelas repetições melódicas e achamos bonita essa fusão, a
imagem do peixe, que nasce junto com um rio no alto da montanha e desce até o
mar. Dentro dessa ideia de repetição, do eterno retorno, começamos a brisar
sobre as dinâmicas autofágicas do mundo de hoje: o tempo que come o tempo, o
homem que engole o homem, algo também em referência às letras de Caymmi. A
faixa foi escolhida para fechar o disco por conta de sua natureza cíclica e da
figura do peixe dentro da astrologia, que simboliza o fim dos ciclos.
Ficha
Técnica:
Bala Desejo: Dora Morelenbaum, Julia Mestre, Lucas
Nunes, Zé Ibarra
Direção Artística:
Bala Desejo
Supervisão:
Marcus Preto
Produção Musical:
Bala Desejo
Co-produção:
Ana Frango Elétrico
Selo:
Coala Records
Produção Executiva:
Uhuuu! Music (João Severo) e Coala Music (Gabriel Andrade, Fernanda Pereira,
Henrique Anacleto, Guilherme Marconi, Christiano Vellutini e Thiago Custódio)
Direção de Arte:
Hermes Miranda (Coala Music)
Assessoria de imprensa:
Trovoa Comunicação
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