O disco é resultado do encontro entre os músicos cariocas Dora Morelenbaum, Julia Mestre, Lucas Nunes e Zé Ibarra
Recarnavalizar, v.t.d. 1. Trazer de volta o
Carnaval, devolvendo a alegria a quem foi dela sequestrado;
2. Liberar-se às festas profanas antes, durante e depois do período de
Quaresma;
3. p.ext. Tornar
possível o acesso de volta à vida, ao encontro e ao abraço;
4. fig. Incorporar
o Sim como postura
afirmativa; o tesão e a euforia como motor fundamental ao início de qualquer
movimento;
5. Manifestar-se coletivamente, de maneira alegre e ruidosa <juntos, os quatro r. as ruas do bairro
e, a partir dali, transformaram toda a cidade>;
6. Tornar outra vez corriqueiras as comemorações públicas, gerais, grupais e
comunitárias, devolvendo acessos, autorizações, passaportes, crachás e
convites;
7. Restabelecer o espaço sagrado aos amores instantâneos, duvidosos,
passageiros e esquecíveis. Antôn.
Individualizar; ensimesmar; recolher; voltar pra casa sozinho.
Muita
música foi produzida sob a nuvem deprê da pandemia que assombrou o planeta nos
últimos dois anos. Diante da bizarra realidade ao redor, esses artistas e seus
trabalhos propunham uma leitura muitas vezes melancólica do cotidiano, feita em
cunho existencialista e ultrapessoal, como retratos desses dias tristes que se
repetiram ao infinito, sempre iguais ou piores. Muitas vezes produzidos no
esquema one man band,
conforme as cartilhas do distanciamento e da fobia social que tanto a pandemia
quanto o individualismo propõem, essas obras de quarentena expuseram o
pensamento do ser solitário, da cabeça perdida dentro de si, atordoada. Sim Sim Sim é, nos
processos e conclusões, exatamente o oposto disso. Primeiro álbum do Bala Desejo, quarteto
formado por Dora Morelenbaum, Julia Mestre, Lucas Nunes e Zé Ibarra, também
nasceu, das composições à gravação, em meio ao recolhimento, no ano passado.
Mas todo o seu resultado aponta para direção oposta, mirando não o buraco, mas
a porta de saída, o futuro viável, o reencontro, o caminho de volta pra rua - over the rainbow e além do
horizonte. O recarnaval.
Lançamento
do Coala Records,
selo ligado ao Coala Festival, Sim
Sim Sim chega às plataformas de música seguindo a lógica dos LPs: o
Lado A está
disponível nas plataformas digitais de streaming
(ouça aqui); o Lado B será lançado em
16 de fevereiro. Os dois lados vão se encontrar em um vinil, a ser lançado em
seguida, ainda neste 2022. Com repertório essencialmente autoral e inédito - a
única exceção é “Nana del Caballo Grande”, poema de Federico García Lorca
musicado por Sergio Aschero -, Sim
Sim Sim agrega nomes das mais diversas áreas e gerações. Tem
direção artística e produção musical do próprio Bala Desejo, com coprodução de
Ana Frango Elétrico e supervisão de Marcus Preto, que também assina esse texto
de apresentação. Tim Bernardes, Gabriel Quinto e João Felippe fazem
participações instrumentais, incrementando a banda formada por Alberto
Continentino (baixo), Daniel Conceição (percussão e bateria), Marcelo Costa
(percussão) e Thomas Harres (bateria e percussão). O maestro Jaques Morelenbaum
assina os arranjos de cordas e divide com Diogo Gomes os de sopro (leia abaixo
o faixa-a-faixa completo segundo as palavras do próprio Bala Desejo).
Mas
era preciso muito mais gente pra levar adiante a proposta agregadora do Bala
Desejo. A fim de desenvolver outras camadas de narrativa pra além do pensamento
estritamente musical do álbum, o quarteto convidou os roteiristas Bruno Jablonski
e Maria Santos pra dividirem a criação de algumas faixas incidentais e outras
interferências que atravessassem Sim
Sim Sim. Nasceu assim a kombi do Bala Desejo, que corre de cidade
em cidade convocando as pessoas pra seu recarnaval. Essa imagem define absolutamente
o processo criativo trilhado por Dora, Julia, Lucas e Zé durante a feitura do
álbum, em que a todo momento um novo elemento chegava junto, a fim de
contribuir com uma mão, uma voz ou uma ideia. E foram devidamente registrados
pelo quarteto em também em cartório poético, certificado na letra de “Lambe
Lambe”: “Pop americano dos garotos do araçá/ Cor de rosa choque ava periférica/
Cai na nossa cama uma semana sem parar/ Tim, tom, beat, brack, ana, rubel,
chablaubla”.
DE
TERESA CRISTINA A SANTA TERESA
Antes
de seguir com outro assunto qualquer, é preciso esclarecer: Bala Desejo não é
uma banda. É, isso sim, a união de quatro forças que já aconteciam (e seguirão
acontecendo) sozinhas, cada uma com sua assinatura e trabalho individual. Mas
que decidiram, neste momento, acontecer em conjunto. A história toda vem de
antes, no começo da década passada, quando Dora, Julia, Lucas e Zé se
conheceram na escola e se tornaram melhores amigos. Mas começou a tomar a atual
forma nos primeiros meses da pandemia, mais precisamente no dia 20 de junho de
2020. Com o saco cheio do isolamento compulsório, Julia saiu ligando pra cada
um dos outros três: “Não quer vir morar aqui em casa?”. E ouviu três vezes a
mesma resposta: “Claro que topo”.
A
vida seguia individualmente. Julia iniciava a pré-produção de seu segundo
álbum. Dora esboçava aquele que será seu trabalho de estreia solo. Lucas e Zé
viviam o meio do processo de gravação do ainda inédito segundo álbum da Dônica,
banda que ambos dividem com Tom Veloso, Miguel Góes e Felipe Larrosa Moura. E
teriam seguido esses planos se não tivessem se juntado na mesma casa. Aliás,
foi com o pretexto de concluir as gravações da Dônica que tiveram a ideia de
montar um estúdio na casa nova. Dali até começarem a criar material novo, dos
quatro, foi um sopro. Começaram a esboçar novas canções, escritas em dupla,
trio ou quarteto. E a visitar o repertório dos autores clássicos da MPB,
influência fundamental e natural dos quatro desde a origem.
As
participações diárias nas fervilhantes lives da cantora Teresa Cristina, que
acalentaram as noites de tanta gente no pior momento da pandemia, em 2020,
deram um impulso fundamental na consolidação dos quatro como elemento único.
Logo cedo, Teresa avisava quem seria o artista-tema da noite. Eles passavam as
tardes ensaiando canções relacionadas e as apresentavam horas depois pra um
público que, machucado pelos gatilhos da pandemia, estava absolutamente
disposto a abraçar aquela pequena janela de belezas na tela do celular. E que
força inacreditável tinham aquelas aparições. A sensação de quem assistia aos
quatro, cantando e vivendo uma realidade paralela e muito mais gentil da
quarentena, era de “quero morar nessa casa, tenho que chegar mais perto,
preciso ficar amigo desses meninos”.
Foi
nas lives de Teresa Cristina que a curadoria do Coala Festival viu a potência
musical daquelas quatro figuras juntas - que, é bom lembrar, ainda não se
identificavam como um grupo uno, portanto não tinham nem nome. É aqui que eu,
autor deste texto de apresentação, começo a ver as coisas de dentro. Estava com
meu amigo Gabriel Andrade, o Bill, idealizador do Coala e meu parceiro de
curadoria no festival, discutindo nomes para o lineup da próxima edição. E
tivemos a ideia de juntar os quatro no palco do festival. A reação entusiasmada
de Fernanda Pereira e Henrique Anacleto, também do Coala, foi o primeiro
termômetro de que ia dar caldo. O quarteto representava tudo o que a gente
sempre defendeu pra o festival: a nova música brasileira que sabe de onde veio
e dialoga com a própria história (sem que isso seja uma questão); compositores
que valorizam especialmente a canção; artistas com potencial para furar a bolha
alternativa e conquistar ouvidos e amores para além de limites de mercado;
figuras de força musical indiscutível, mas que também sejam grandes em cena. No
dia seguinte, um sábado, Bill fez o convite ao quarteto: “Querem tocar no
Coala?”. Detalhe: esse convite não foi feito em um telefonema ou e-mail, mas no
chat da própria live da Teresa Cristina. Rolou a gritaria da surpresa e eles
mal conseguiam entender se era uma proposta real ou um trote. Mais algumas
ligações pra o produtor deles, João Severo, e estava tudo resolvido.
Mas
a pandemia seguiu castigando. Com a impossibilidade de fazer um show naquele
ano e com o namoro engatado entre quarteto e Coala, Zé Ibarra me apresentou o
desejo de fazer um single ou um EP como “esquenta pra o festival”. Levei a
ideia ao time, Bill sempre à frente nesses casos, mas já sugeri que fizéssemos
um álbum inteiro. Todos nós - quarteto, Bill, eu, Coala - gostamos de contar
histórias e é só com um álbum que isso pode ser feito de fato. Bill já tinha me
falado em gravar um “ao vivo no Coala”. Não havendo festival, por que não
inverter a ordem e fazer um álbum de estúdio? Colou geral. E o Coala Records
virou o selo do quarteto ainda sem nome. Nesse momento, me ofereci (muito mais
sério do que isso: me atirei aos pés deles; lembra do “quero morar nessa casa,
tenho que ficar perto desses meninos”?) pra fazer a direção artística do álbum.
Dei sorte e eles toparam, mas mesmo essa função foi se transformando em outra
coisa, dada a personalidade agregadora dos quatro: sempre entrava alguém novo
pra fazer alguma função que ainda nem existia - e você vai entender a dimensão
disso quando ler a ficha técnica de Sim
Sim Sim.
O
fato é que eles tinham um álbum pra entregar em seis meses. E, se tanto, três
canções prontas. Precisavam trabalhar muito e rápido. Usando o prazo de entrega
como musa inspiradora, os quatro - mais Lucas Vaz, o videomaker e fotógrafo que
logo se juntou ao grupo - partiram, em março, para o sítio de Julia Mestre, em
Barbacena, interior de Minas. Voltaram lá outras duas vezes. E, naquele cenário,
criaram quase todo o repertório que você ouve agora em Sim Sim Sim. Ali, também
encontraram o nome: Bala Desejo.
Devidamente
batizados, retornaram ao Rio, cidade em que os quatro nasceram, e começaram a
burilar o material. Fizeram os primeiros ensaios pré-estúdio na garagem da casa
de Dora Morelenbaum. E, a essa altura, entra no time Ana Frango Elétrico.
Também cantora e compositora, ela chega pra cuidar de toda a produção musical
do álbum. Mas, outra vez, a força dos Bala Desejo se impôs - quatro cabeças que
não param de ter ideias e insights
e impulsos e lampejos o tempo todo - e veio da própria Ana, logo depois, a
decisão de assinar a co-produção, deixando a produção a cargo dos quatro
integrantes do Bala.
Chega
enfim o momento de entrar em estúdio, a mais aguardada das etapas. Fomos morar
em Santa Teresa, em uma deliciosa casa de quatro quartos na rua Áurea, a poucas
quadras do estúdio Carolina. Juntos sob o mesmo teto, os quatro balas, eu e a
turma do Coala pudemos pôr em prática muito do clima que seria registrado no
álbum, em temporada marcada por polaroides e cogumelos, rodas de violão e pias
de louça pra lavar. A experiência “anos 70” do processo, muito diferente da
maneira como são gravados os álbuns nesses nossos tempos práticos, certamente
resultou em expressão sonora, que você vai poder detectar na audição de Sim Sim Sim.
Terminadas
as gravações de base, o material ganhou overdubs,
feitos de novo no primeiro endereço dessa história, o estúdio montado na casa
de Julia Mestre. As cordas e sopros de Jaques Morelenbaum foram gravados na Cia
dos Técnicos e outros instrumentos, registrados no estúdio de Caetano Veloso,
onde Lucas Nunes trabalhava na produção do álbum “Meu Coco”. Última coisa a
entrar foram as intervenções entre as faixas, que amarraram a segunda camada de
sentidos de Sim Sim Sim.
Mas isso foi o mais fácil. Todo mundo estava como a audiência das lives de
Teresa Cristina, querendo morar nessa casa, louco pra ficar ainda mais perto
daqueles quatro meninos.
MARCUS
PRETO
janeiro de 2022
Ouça
Sim Sim Sim nas plataformas digitais de streaming
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