*Por Roberta Gaio
As
discussões sobre a diversidade da condição humana sempre estiveram presentes em
diferentes espaços da sociedade – e não é diferente no âmbito esportivo. A
mulher sofre na tentativa de inserção nos esportes de alto rendimento, em
especial nos Jogos Olímpicos, com a criação de métodos de investigação,
regulação e controle de corpo com a justificativa de proteger as próprias
mulheres. O primeiro teste, por exemplo, surgiu em 1966 para verificar as
genitálias e características sexuais secundárias. No ano seguinte, o Comitê
Olímpico Internacional implementou a testagem cromossômica. Atualmente, o que
impera são testes para verificar a concentração hormonal de testosterona.
A
polêmica que envolve o esporte feminino não é de hoje. Na Antiguidade, a
participação de mulheres nos Jogos Olímpicos não era permitida. Na verdade,
eram vistas como seres que deviam ficar imóveis, com o intuito de se
preservarem para gerar filhos/as saudáveis. Com um olhar biológico em relação
ao corpo, as mulheres foram impedidas de ocupar os espaços sociais, culturais e
políticos! Assim, as características atribuídas a elas sempre foram de sexo
frágil, recatada, emotiva, que nasceu para ocupar o lar, cuidar do marido e dos
filhos.
O
homem, não. Ele é visto como um organismo com funcionamento padrão, sempre
forte, ágil e inteligente, que pode correr, lutar, chutar, dançar, fazer
piruetas, nadar, entre outros movimentos culturais e esportivos. Nos Jogos
Olímpicos da Antiguidade, pôde mostrar suas capacidades e habilidades. Na Era
Moderna, o Barão Pierre de Coubertin fez renascer os Jogos Olímpicos, e assim
teve início a participação feminina – mesmo contrariando seus ideais.
Aos
trancos e barrancos, a mulher está conseguindo ocupar seu lugar no mundo e no
esporte, mas… sempre há um mas!
Seu organismo ainda é motivo de debate em relação a sua participação. Silvana
Goellner, no livro O esporte e
a espetacularização dos corpos femininos, afirma que a “construção
de um organismo forte, assentada no trinômio ‘saúde, força e beleza’ passa a
ser meticulosamente observada, visto que a densidade do ser forte é tolerada
até o ponto em que não ultrapasse aqueles limites ditados por sua ‘natureza’,
ou ainda pelo que a biologia convencionou designar como sendo próprio do corpo
feminino”.
Aqui
surge a reflexão: não basta ser mulher? Porque é assim que o esporte masculino
acontece. O homem não precisa provar por meio de testes que está apto a
competir em sua categoria. Graças aos testes de gênero, várias atletas foram e
são impedidas de competirem e viverem do esporte. Elas sofrem e têm seus corpos
e vidas minuciosamente investigados. Tudo isso em função de um discurso de
justiça, de igualdade e de ética, entendendo ser necessário preservar as
características femininas, no padrão biológico imposto, para que as mulheres
possam ter sucesso no esporte e serem felizes.
Os
exemplos são muitos: Annet Negesa, meio fundista de Uganda, foi impedida de
participar dos Jogos de Londres, em 2012, e afastada das competições por oito
anos após ter sido forçada a fazer cirurgia por ter testículos internos; Caster
Semenya, sul-africana bicampeã olímpica e mundial no atletismo lutou contra as
regras do COI e da IAAF na Corte Arbitral (e perdeu); Erika Coimbra,
ex-jogadora de vôlei do Brasil, bronze nos Jogos de Sydney, em 2000, que tem
Síndrome de Morris, a qual produz testosterona acima do normal; Edinanci Silva,
ex-judoca brasileira que passou por verificações de gênero com grande
humilhação em relação a sua vida como um todo; entre tantas outras.
Muitas
mulheres, em função de características genéticas ou hormonais, têm testosterona
demais para estarem no esporte feminino (não conseguido a popular “carteira
rosa”), e de menos para estarem no esporte masculino. Triste realidade a nossa!
Ficamos impedidos/as de assistir aos espetáculos esportivos, seus recordes e
atuações simplesmente porque se acredita no poder da biologia em definir, de
forma simplista, a complexidade do ser humano.
Bárbara
Pires, no artigo “As políticas e produções de sexo/gênero no esporte”, mostra
que “a partir das histórias que retraçamos anteriormente, em que atletas com
variações intersexuais comumente passam por avaliações coercitivas e
humilhantes, além de procedimentos esterilizantes e estéticos para garantirem
sua elegibilidade enquanto mulher em uma determinada categoria esportiva, é
bastante perturbador o COI sugerir que não seria discriminatório uma mulher com
hiperandrogenismo ser assignada como homem em uma competição”.
Assim,
os profissionais de Educação Física devem trabalhar esse assunto em suas aulas,
discutindo a diversidade da condição humana e deixando o esporte acontecer para
além de matizes normativas (de gênero, etnia, classe social, biótipos,
habilidades, entre outras). Há que se desconstruir crenças que estão
cristalizadas há muito tempo na sociedade – e que representam o pensamento do
universo esportivo mundial. Os regulamentos são necessários, mas há que se
alertar para a necessidade de olhar diferentes corpos e estabelecer critérios
que respeitem essas diferenças. Que seja a vitória uma possibilidade de
todos/as e que o fair play
possa ser ensinado desde a infância para que o ser humano saiba valorizar a
competição como um espaço de crescimento.
* Roberta Gaio é doutora e mestre em Educação e especialista em Ginástica Rítmica e Motricidade Humana. É autora e organizadora de diversos livros na área de Educação e Educação Física e desenvolve pesquisas relativas aos temas Ginástica e Diversidade, Inclusão e Formação Profissional e Manifestações Culturais em Ginástica e Dança na Escola. É coordenadora do projeto de extensão GGDSAL (Grupo de Ginástica e Dança do UNISAL), unidade Campinas, e professora dos cursos de Educação Física no Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL – e-mail: unisal@nbpress.com
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