O trecho acima faz parte da música Carta à República composta por Milton Nascimento e Fernando Brant, em 1987. No contexto de redemocratização, os compositores ousaram sonhar um país em que “o povo era senhor”, como também coloca a canção. O que envolvia questionar, inclusive, qual República estava sendo construída. Para pensar a experiência republicana brasileira, precisamos fazer uma breve digressão. O feriado de 15 de novembro comemora a Proclamação da República, ocorrida em 1889. Um evento que marcou a história nacional e revela muito sobre o nosso processo histórico.
A
monarquia foi derrubada e um golpe instituiu um governo provisório (e
autoritário) tendo o Marechal Deodoro como primeiro presidente do Brasil.
Deodoro, aliás, possuía inclinações monarquistas. Então vejamos: a República
brasileira foi proclamada por um militar com tendências monarquistas através de
um golpe. Não é exatamente um cenário onde o povo é senhor, certo? O
historiador José Murilo de Carvalho analisou esse processo e afirma que a
participação popular foi quase nula na queda institucional do Império. O que
não causa muito espanto, basta lembrarmos da política deliberada de
marginalização de segmentos sociais no Pós-Abolição, sobretudo, pessoas
racializadas.
Isso
quer dizer que o povo não participava da política na Primeira República? De
forma alguma! Mas essa participação, em grande parte, passava ao largo do viés
eleitoral e institucional. As intervenções ocorriam nas manifestações
culturais, em revoltas populares, luta por direitos, nas festas e eventos, etc.
Mas tudo isso já é muito revelador de elementos que permaneceram. Podemos
destacar dois deles: 1) o caráter frágil da democracia brasileira e
marcadamente controlada por poucos. Basta lembrarmos que no século XX, o Brasil
assistiu diferentes golpes de Estado: a revolução de 1930, um golpe das
oligarquias nas próprias oligarquias; o Estado Novo de Getúlio Vargas; o golpe
civil-militar de 1964. 2) A forte resistência popular em defesa da democracia e
de seus direitos. Diferentes parcelas da população sempre atuaram em prol de
seus interesses, vale citar rapidamente alguns desses momentos: o Modernismo
brasileiro; a coluna Prestes; o Queremismo; a Tropicália; as mais distintas
oposições à ditadura civil-militar; a campanha pela Anistia; e a luta pela
redemocratização do país nos anos 1980, das Diretas-Já à Assembleia
Constituinte.
A
partir da chamada Nova República, o Brasil viveu, comparativamente, um período
mais estável e de consolidação democrática concreta. Contudo, quando passamos
longos anos sem grandes rupturas institucionais, temos a tendência a
naturalizar as coisas como são. Um erro. A história é um extenso e constante
processo de transformações e continuidades, disputas de ideias, práticas e
formas de pensar as sociedades humanas. A redemocratização - após o fim da
ditadura civil-militar - alcançou trinta e cinco anos de idade. Parece muito se
pensarmos que é o tempo democrático mais duradouro em nossa história. Mas é
extremamente curto se compararmos com a história de nosso país.
Nossa
democracia apenas engatinha seus primeiros passos. E, como um bebê, precisa de
cuidados para se desenvolver plenamente. Não vivemos em um regime democrático e
republicano porque naturalmente é assim, mas porque milhões de mulheres e
homens construíram experiências históricas que nos levaram a estarmos onde
estamos hoje. Então essa tal democracia é perfeita? Estamos falando de
experiências humanas. Nada é perfeito. Mas é através da democracia que
avançamos em questões importantes de participação popular, direitos humanos e o
direito das minorias. A democracia e o regime republicano aqui no Brasil, com
todos os seus problemas, deram voz para sujeitos históricos calados e
marginalizados por séculos. Defender a democracia e a nossa República é defender
a possibilidade de avançarmos e desenvolvermos mecanismos de inclusão e
participação cada vez mais populares.
Neste
ano, o feriado da Proclamação da República coincidiu com a realização das
eleições municipais. Ainda que não seja o único espaço de participação
política, as eleições cumprem um papel importante nesse processo. É na cidade
que as desigualdades e problemas cotidianos ficam mais claros, por isso, o
papel dos prefeitos é tão fundamental, assim como dos vereadores, que devem
fiscalizar o executivo, propor e aprovar leis e votar a proposta de orçamento
anual do município. É nas cidades também que outras formas de construção
política podem se concretizar de maneira mais acessível, como assembleias
populares e orçamento participativo.
Essas
eleições municipais podem ser encaradas ainda como um retrato da sociedade
brasileira, revelando no que podemos avançar em nossa democracia. Trazemos,
rapidamente, alguns dados significativos. Partindo no recorte de gênero,
segundo dados dos PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
Contínua - 2019), as mulheres são 51,8% da população brasileira. Porém, pelos
dados do TSE, na atual corrida eleitoral, elas são apenas 34% do total de
postulantes ao cargo de vereadora e prefeita. Pensando em termos de raça, no
Brasil, 56,2% da população se reivindica preta ou parda, de acordo com o PNAD
Contínua. Esse ano, pela primeira vez, o número de candidaturas de pretos e
pardos ultrapassou o número de candidaturas de brancos, somando 49,84% do
total, conforme informações TSE. Ainda assim, até o ano de 2020, apenas 29% dos
prefeitos se declararam pretos ou pardos. E de prefeitas mulheres? Se o número
de candidaturas já é baixo, nas eleições passadas (2016) apenas 12% dos
municípios elegeram mulheres, segundo o TSE.
Fica
evidente a diferença de representatividade nos cargos públicos municipais, pois
parte significativa da população é efetivamente sub-representada nos postos de
poder responsáveis por elaborar e executar políticas públicas com efeitos
diretos em suas vidas cotidianas. Reforça-se, assim, a necessidade de
consolidar e aprofundar as conquistas democráticas, pois se a República deve
garantir os direitos a todos os seus cidadãos e cidadãs, é fundamental que
todos os grupos sociais façam parte efetivamente às esferas decisórias. Façamos
como Milton e Fernando, ousemos sonhar (e construir) um país mais democrático,
nessas eleições municipais e no nosso dia a dia.
Autores:
Fernanda
Ribeiro Haag é doutoranda em História Social e professora da Área de Linguagens
e Sociedade do Centro Universitário Internacional Uninter.
Renan
da Cruz Padilha Soares é mestre em Práticas na Educação Básica e professor da
Área de Linguagens e Sociedade do Centro Universitário Internacional Uninter.
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