O ano de 2020
teve um início como muitos outros: esperança de um tempo melhor, os mais
supersticiosos vestindo essa ou aquela cor para dar sorte, lentilha e uvas para
ter uma mesa farta no novo ano, “adeus ano velho, feliz ano novo” cantarolado
por alguns.
O que não
esperávamos, era a chegada de uma pandemia. Com ela, nossa rotina mudou,
sentimentos como medo e ansiedade passaram a habitar o espírito, a saudade do
abraço divide espaço com o cuidado com aqueles que amamos. Palavras até então
desconhecidas ou esquecidas passaram a fazer parte do nosso vocabulário:
pandemia, covid-19, home office, ensino remoto, testar positivo.
Foram muitas
mudanças em um curto período de tempo, sem dúvida. Mas, ademais das alterações
na rotina e no vocabulário, a pandemia veio nos mostrar as desigualdades que,
mais do que nunca, gritam de forma aguda e insistente, enfatizando que estão
ali, diante dos nossos olhos, que parecem se acostumar a vê-las, deixando de
reparar que existem.
As pesquisas nos
mostram que quem é mais afetado pela doença são as pessoas mais pobres, que não
têm condições de manter o distanciamento social e, muitas vezes, nem mesmo a
higiene e os cuidados necessários para manter o coronavírus distante. Nos
Estados Unidos, dados mostraram que a população negra foi a mais atingida. Por
quê? Porque os negros têm menos condições de acesso aos cuidados necessários e
tratamento.
Vemos claramente
o fator econômico interferindo quando tratamos da pandemia. Mas, quero chamar
atenção aqui para outro aspecto: o de gênero. A desigualdade que ainda temos entre
homens e mulheres foi também denunciada pela pandemia.
Com a mudança da
rotina, veio a sobrecarga – sim, ela já existia, mas se acentuou. Conciliar o
trabalho – seja home office ou presencial – com a organização da casa e o
ensino remoto dos filhos tornou-se um grande desafio. Limpar a casa, fazer a
comida, lavar, passar, organizar, acompanhar as aulas e tarefas escolares dos
filhos e ainda produzir no trabalho. E há divisão dessas tarefas entre o homem
e a mulher?
Infelizmente, o
que os dados apontam é que não. E é preciso ficar claro que “ajudar” não é o
mesmo que “dividir” as tarefas e responsabilidades que são essenciais, mas
também não pagas e, por isso, invisíveis. A divisão sexual do trabalho é
historicamente utilizada no processo de subjugação da mulher aos interesses da
sociedade com olhar predominantemente masculino. Somos ensinados e
condicionados, de geração a geração, a perpetuar a sociedade patriarcal em que
as tarefas domésticas e a educação dos filhos é papel exclusivo da mulher. O
homem ajuda, mas não compartilha, não divide.
A pandemia veio
reforçar esses estigmas historicamente construídos e afirmados por gerações.
Segundo Nara Carvalho, vice coordenadora do Centro de Referência em Direitos
Humanos e professora do departamento de Direito da UFJF-GV, pela divisão sexual
do trabalho, há funções tidas como femininas, especialmente relacionadas a
afazeres domésticos (por vezes sequer percebidos socialmente como pertencentes
à categoria trabalho), e a profissões voltadas ao cuidado com o outro (num
desdobramento das funções supostamente naturais de esposa, mãe e dona de casa).
À mulher, cabe servir, devendo ser especialmente devota à família e filhos, em
um processo que a aproxima do estatuto de propriedade – mulher é mais objeto
dos seus do que sujeito de si mesma. Isso, sem mencionar a violência doméstica
contra mulheres, que, conforme apontam as pesquisas, aumentou muito neste
período de isolamento social.
É necessário,
portanto, ficarmos atentos a essas questões, para uma melhor distribuição das
tarefas domésticas e do cuidado com os filhos, e não somente durante a
pandemia. A ONU, no objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5, prevê
alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas do mundo
até 2030. Mas, como podemos observar, temos, ainda, um longo caminho pela
frente.
Autora: Deisily
de Quadros é professora da área de Linguagens e Sociedade da Escola Superior de
Educação do Centro Universitário Internacional Uninter.
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