A
noção de crise no jornalismo tem perseguido profissionais, estudantes e
pesquisadores da área com mais frequência nos últimos anos. Os fatores que
estariam provocando a comunidade a se preocupar com o futuro da profissão estão
associados a um aspecto conjuntural que poderia ser compreendido, no linguajar
dos economistas, como uma “tempestade perfeita”.
A
metáfora refere-se à "convergência de circunstâncias que levam a uma
catástrofe", conforme descrito por Daniel
Fernandes, em um artigo publicado no Estadão, em 2015, ao lembrar que o uso
se popularizou a partir do livro "The perfect storm", de Sebastian
Junger, também roteirizado para filme (traduzido no Brasil como "Mar em
fúria").
Há
uma certa razão nisso. O jornalismo vive períodos turbulentos. E a realidade dá
algumas pistas disso. Vejamos 4 aspectos fundamentais da crise:
- Em primeiro lugar, o jornalismo perdeu a primazia na
produção e circulação de informação. A internet impôs um cenário de
hiperconcorrência, escancarado pelas novas possibilidades de comunicação,
conforme explicam os canadenses Jean Charron e Jean Bonville.
- Esta nova realidade avança para um segundo aspecto da
crise, descrito no famoso e controverso dossiê do jornalismo
pós-industrial de C.W. Anderson, Emily Bell e Clay Shirky. Além da
pulverização da audiência, que passa a consumir informação (ou
desinformação) em outros ambientes, reduzindo o valor do espaço e tempo
publicitário dos jornais, o movimento de fuga de recursos de anunciantes
soma-se às novas possibilidades de comunicação entre organizações e
público.
- Como consequência, temos o avanço do terceiro aspecto,
expresso pelas dificuldades das empresas em garantir os empregos de
jornalistas e o investimento em produções mais caras, como as grandes
reportagens.
- O quarto e mais recente movimento diz respeito ao
cenário político e pela chamada pós-verdade. Em países como Brasil,
Estados Unidos, Hungria, Índia, entre outros, a crise das instituições, da
qual emerge um novo tipo de populismo neoliberal, calcado também na
desinformação e ataques ao jornalismo, tem promovido a desconfiança sobre
o valor do trabalho jornalístico. As pessoas agora questionam, geralmente
pelos motivos errados, se os jornais realmente estão pautados por
critérios de relevância social e interesse público.
E,
de quebra, ainda temos a pandemia, que aprofunda a fuga de capital publicitário
dos jornais e exige a adaptação de jornalistas ao trabalho remoto.
O
jornalismo, aquela atividade cuja função primordial tem sido inegavelmente a de
dar sentido ao conceito de interesse público, deve ser percebido a partir do
seu papel informativo marcado pelas contradições inerentes a uma instituição
cujas lógicas fundamentais são a expressão da crise da modernidade: o aspecto
comercial (interesse privado representado pela necessidade de audiência e
captação de recursos para sustentação do negócio) e o aspecto emancipatório
(interesse público representado pelo ímpeto jornalístico na busca por acesso à
informação e justiça social).
A
partir de um olhar histórico, portanto, podemos relativizar o sentido da crise
do jornalismo ou do que poderia ser chamado de tempestade perfeita.
Como
demonstra a pesquisadora estadunidense Elizabeth Breese, o jornalismo vive uma
crise perpétua demarcada por um discurso que, volta e meia, ganha força,
colocando em questão o futuro do jornalismo e da profissão. Geralmente mudanças
tecnológicas, novas mídias ou novos perfis de entrantes na profissão tendem a
arrefecer os argumentos dos mais saudosistas.
Se
observarmos alguns dados recentes, como do Instituto
Reuters, que monitora o consumo jornalístico anualmente mais de 40 países,
veremos que nem tudo está perdido. Pelo contrário. A partir de um olhar geral
sobre a compreensão da importância do jornalismo na vida das pessoas, o que
temos é uma curva ascendente em muitos aspectos. Eu listo aqui 6 motivos para
duvidarmos da tempestade perfeita.
- As organizações jornalísticas aparecem em quarto lugar
dentre as mais confiáveis para se saber sobre o coronavírus, atrás apenas
de cientistas, médicos e organizações de saúde. No Brasil, a proporção de
pessoas que se diz preocupada com a difusão de conteúdos falsos na
internet é de 84%, o que coloca o país no topo do ranking, sendo que 40%
identificam estes conteúdos como provenientes do meio político, indicando
algum grau de senso crítico sobre o assunto.
- Outro dado interessante é sobre os assinantes de
veículos na web. Nos Estados Unidos 20% das pessoas assinam sites
jornalísticos, na Noruega 42% e na Argentina 11%. No Brasil, grandes e
pequenas marcas jornalísticas também têm comemorado o crescimento de
assinantes. Estes são números promissores que indicam a capacidade de
sustentação financeira do jornalismo pelo consumidor direto, sobretudo
porque a maior parte das pessoas que assinam, o fazem porque acreditam que
terão informação de qualidade.
- Outro dado importante que aponta a existência de uma
demanda por produtos jornalísticos diz respeito ao jornalismo local. 71%
das pessoas dizem buscar informações em sites de notícia local e o Brasil
lidera o ranking mundial de pessoas que se dizem interessadas em notícias
locais, com 73%.
- Diferentemente das análises que apontam uma redução da
capacidade de cobertura horizontal e vertical do jornalismo, o que temos é
um mercado cada vez mais heterogêneo e segmentado. Poderíamos listar uma
série de inciativas que se abrem como novas possibilidades de trabalho aos
jornalistas
- Consideremos ainda a demanda pelo trabalho de checagem
de informações que vem se consolidando nos últimos anos, além de outras
novas diversificações do trabalho jornalístico como as lives que vêm
fazendo enorme sucesso, convertendo-se em novas oportunidades de
faturamento.
- Por fim, é preciso também lembrar das produções para
streaming, como documentários e podcasts, que têm apresentado um
crescimento significativo nos últimos anos. Nunca se consumiu tanta
notícia como agora, porque também nunca se teve tanto acesso e tanta
diversidade de oferta e de canais neste mercado.
Não
estamos dizendo que o jornalismo está superando a crise, porque a crise do
jornalismo é insuperável. Mas se nos permitirmos estabelecer uma visão mais
ampla do jornalismo, a partir de um olhar histórico, veremos que esta é apenas
mais uma tempestade que desafiou o jornalismo a se adaptar à realidade. Não
significa que temos um jornalismo melhor do que antes. Significa que temos
novas condições em disputa que oferecem possibilidades de avanços e
retrocessos.
Autor:
Guilherme Carvalho é doutor com pós-doutorado em Jornalismo. Professor e
coordenador do curso de jornalismo do Centro Universitário Internacional
Uninter. Diretor científico da Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo
(ABEJ).
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